terça-feira, 15 de abril de 2014

Fim

Entrei como o costume me ensinou a entrar; só consegui enxergar ao fechar os olhos: as lembranças faziam diáfanas as minhas pálpebras.
O cheiro não estava mais lá, mas senti-lo não foi trabalhoso - a pipoca e os cães sedimentaram seus aromas em minhas memórias.
Ela, minha mãe, concisa em corpo, em contraste com a sabedoria, saudosa e triste - o retorno era motivado por ocaso, doença.
Já não tinha controle sobre meus dedos, esses que compeliam meu salário. Era eu escritor, não desses de livros - os artistas. Escrevia histórias tristes e absurdas de um povo marcado pela violência, pela prisão sem muros em que todos nós nos encontramos.
Mas com meu corpo desenhando-se uma árvore eu não podia mais labutar na delegacia. Meus membros atrofiando me bancaram uma excursão pelo prédio e os ofícios nele realizados - só faltou eu ser "peso-de-porta". Acabou - a doença transformou meus três anos de trabalho em trinta.
Amigos? Não, não... Sumiram todos. Cheguei a minha antiga casa pela gentileza de um desconhecido comprada por uma boa quantia de dinheiro.
Minha mãe não se levantou, coitada: já não o fazia sozinha há mais de meia década; e quem era eu, aquela árvore com galhos sem rumo, para ajudá-la? E um abraço seria no mínimo tragicômico.
Trocamos olhares tristes e felizes; mais felizes que tristes: estávamos juntos e nossos fins eram próximos.
Quem sabe sincronizados?


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