segunda-feira, 27 de junho de 2011

Napoleão


Vítima do acidente de ter nascido, de suas pernas só restavam as dores fantasmas.

Sentado em sua possante cadeira de rodas motorizada, aproveitava o que o acaso não havia lhe tirado e mais o que o mesmo acaso havia lhe dado em fartura: era um homem herdeiro de muitas posses, e, com exceção de duas amputações femorais, era muito saudável e belo.
Não, não foi esse o homem que conheci...
Andávamos eu e um amigo, no terceiro sábado de uma semana tipicamente brasileira, por uma cidadezinha horrorosa, mas muito frequentada por motivos religiosos/comerciais, quando ouvimos berros dizendo “água por um real”, olhei para a frente, para trás e para os lados, mas só achei o gritador quando olhei para baixo; era um tronco com uma cabeça e dois braços debruçado num “skate” que ainda carregava umas garrafinhas.
Farei uma pequena digressão para depois concluir meu pequeno texto: é muito fácil e cômodo atribuir a vida e seus acasos (que bem friamente são sinônimos) a um Deus controlador e enxerido, assim não tem-se a responsabilidade de pensar nem de conhecer a abjeta realidade de que estamos jogados aqui pra nos virarmos e driblar as tocaias que o acaso nos planta ( o acaso não planta nada, todos os infortúnios estão soltos e são levados pelo vento; às vezes já estão dentro de nós em forma de tumores). Quando estamos de fora, fica mais fácil ainda: é muito fácil dizer “foi Deus quem quis assim” quando é o filho do vizinho que morre. Acredito em dois tipos de pessoa: as que atribuem tudo a Deus (cegas, mas autênticas) e as que nada atribuem a Ele. O meio termo retrata a fé de quem não tem fé – coisa chata.
Voltando ao texto... Resiliência ou loucura? Erasmo (1467?-1536) - teólogo Holandês – com seu “Elogio da Loucura” - tratou de forma muito bem humorada e filosófica o papel fundamental que a loucura exerce em nossas vidas. A vida real e prática, não as dos belos sonetos. E acreditando piamente que sem a loucura todos enlouqueceriam, peço ao acaso que minha sanidade vá antes de meu corpo. Aos fofinhos otimistas e bonzinhos: eu não acho que um acidente, uma doença, uma amputação ou qualquer invalidez seja motivo para fecharmos os olhos pra tudo de bom que há na vida, olhem para os atletas paraolímpicos, adoro alguns deles, chego a ser fã; mas a falta de dignidade, sim, é um motivo para enlouquecer e/ou querer morrer. E me perdoem a franqueza: não há dignidade em surfar de bruços num “skate”, com roupas e corpo sujos, vendendo água a um real.
A loucura de Erasmo não seria bem vinda?

Um comentário:

  1. Talvez não haja a dignidade social e valor dos efeitos que podemos ter quando dignamente habilitados e formados .. dentro do nosso meio! Porém, que seja digno tudo que o SER operante realiza dentro de suas capacidades, e ou o que pode lhe trazer complemento nas suas condições. Enfim, posso também concordar com você caro Rodrigo ... ninguem deveria ficar se sujando, ou tão proximo ao chão ... com seu nariz, para ganhar uns trocados! Indignidade Social?

    ResponderExcluir